31 de agosto de 2011

"Uma voz chama Beatriz do portão: “Vizinha!”. Ela levanta a cabeça, o corpo soerguido. Os olhos desconfiados. A tarde tinha começado a descer e os socalcos no chão da quinta tornam-se traiçoeiros. “Vizinha!”, chamam de novo. É preciso que Beatriz dali corra. É preciso que Beatriz dali fuja. Para onde não seja avistada. Para um sítio onde possa  existir sem que ruídos daninhos a perturbem e a impeçam de fazer o que deve ser feito. Beatriz quer fugir para esperar.
Uma mancha branca atravessa-se-lhe diante e Beatriz enreda-se no peso dos seus próprios pés. Leva muito tempo a cair, a mulher que ainda há pouco parecia de ferro debruçada sobre as ervas. Leva uma vida a cair. Tem tempo de ver os muros da quinta que sobem, decorados a rosas de toucar e arbustos silvestres, os gatos que se afastam do seu corpo, o escuro da terra que alastra e até a forma das pequenas pedras onde magoará as mãos e o rosto. Para tudo têm tempo os velhos. Por causa da morte que é certa e por isso não corre. A velhice é um posto privilegiado de espera.
Beatriz cai na terra por regar. Os gatos em forma de nuvem cruzam-se sobre o seu peito."

in O ANIMAL DE GELO 

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